terça-feira, 28 de abril de 2009

Crónicas estapafúrdias vol. VI - intoxicação mental


A crónica seguinte é igual a tantas outras. A parte estapafúrdia não é assim tão habitual, mas é usual. Quando chegar à parte estafafúrdia eu aviso.
Mais uma noite atribulada como quase todas as outras. Pouco passava da 1h quando vem para a Sala de Agudos a jovem Alice. A Alice desde os 12 anos que, segundo a irmã que a acompanhava, tenta pôr fim à vida.
Tinha tomado mais de meia centena de comprimidos de um antipsicótico qualquer. Eram quase meia centena de episódios pelos mesmos motivos, já a reconhecia, não era a primeira vez que a recebia.
Por muito frenético e impaciente que me torne nos turnos da noite, nestes momentos atingue-se-me sempre uma aura de compaixão e compreensão. Há quem defenda a estratégia da "agressividade" moderada enquanto lidamos com este tipo de situações, para tentar evitar futuras recaídas e novas tentativas de suicídio. Dar uma liçãozita de moral, deixar ficar a sonda após a lavagem e o carvão, como uma forma de dizer, Não faças isto outra vez! Tás a ver como é dificil ter essa sonda do nariz, vê lá não repitas.
E depois há quem defenda a estupidez em bruto, como já vão perceber. Eu não defendo nem uma coisa nem outra, apenas faço o que me compete, explico com calma o que vou fazer e faço. Tudo o resto vem depois; perceber os motivos, encontrar alternativas, será mais fácil com a pessoa acordada.
E agora a parte estapafúrdia:
Eu já tinha saído da sala, mas soube mais tarde (já vão perceber como) o que se passou:
Entra o Dr I (de Imbecil) e pergunta Então o que é que aconteceu? A Alice estava em coma, quem respondeu foi a irmã, que segurava o choro,
A minha irmã tentou suicidar-se.
Aí foi?! Para se matar atira-se de uma ponte ou põe-se em frente de um comboio.
Como?! Está a brincar comigo?! Pergunta a irmã incrédula, Se fosse um familiar seu gostava que falassem assim consigo?
Não, respondeu ele. Fim da conversa.
Eu continuava no vai vem quando vejo a irmã a chorar fora da sala, afinal não tinha conseguido segurar o choro, ele era ininterrupto tal como todas as outras vezes que a Alice, quase da mesma idade, tentava matar-se. Ela pressentiu-me e virou o olhar escondendo as lágrimas, eu consternado, fingi que não notei a sua mágoa e passo ligeiro... talvez ela quisesse ficar sozinha.
Passados uns dias, vem ter comigo a irmã da Alice. Educada, pede desculpa por incomodar, relembra-me a situação e agradece-me desde logo os cuidados.
Reconhecia-a de imediato, senti-me feliz por aquele agradecimento e perguntei como estava a irmã.
Passou o dia a chorar, estão a dar-lhe medicamentos no soro, respondeu. Posso fazer-te uma pergunta, espero não trazer-te problemas com isso. Tratou-me por "tu", não levei a mal.
Sim, claro.
Quem era o maqueiro que a dada altura esteve comigo e com a minha irmã? Fez-me a descrição dele, contando depois o que se tinha passado, achei aquilo um pouco estranho, não fazia a mínima ideia a quem ela se estava a referir. Continuou com a descrição, até que eu percebi,
Esse senhor não é maqueiro, é médico.
Bem me parecia, observou, Achei estranho ele estar a registar tensões no computador.
Enquanto me contava tudo isto os seus olhos voltavam a segurar o choro, disse-me, Eu sei que para vós (profissionais de saúde) que lidam com estas situações enumeras vezes, isto se calhar não é nada, não é motivo para reclamação, mas é minha irmã, sangue do meu sangue.
Se no início talvez compreendesse minimamente a estupidez do Dr. I, talvez pelo cansaço das horas seguidas, pelo stress que leva à hipoxigenação cerebral e consequentemente a actos estapafúrdios, passei logo a condenar profundamente.
Ela foi para casa pensar a reclamação.
As melhoras Alice

Nota: Alice nome fictício, carvão (para não prof. de saúde) - neutraliza a acção dos medicamentos ingeridos em excesso em casos de intoxicação

G.

11 comentários:

  1. infelizmente isso é o pão-nosso-de-cada-dia nos hospitais. grande parte dos profissionais de saúde tem a mania de mandar bitaites morais. mas um dia o telhado parte-se. eu acredito nisso.

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  2. Caro Guilherme,

    De facto este tipo de situações levam-nos muitas vezes a pesnar qual é a melhor solução para lidar com estes casos...a minha experiência levou-me a fazer de tudo um pouco, ou seja, a melhor forma que eu vejo para lidar com este tipo de casos é ouvir as pessoas, a doente e familiares e depois de ver o contexto em que esta ocorre actuar segundo esta...o que eu quero dizer com isto é que em casos temos que ser carinhosos compreensivos e explicar as implicações de actos como estes, muitas vezes impensados, por outro lado temos doentes que perante uma tentativa de suicido, maior parte das vezes recorrente, só a indiferença ou de certa forma alguma agrresividade ( ou frieza chamemos antes assim) é que faz com que as pessoas entendem que esta não é a melhor forma de chamar atenção...

    como são pessoas que tratamos, ja sabemos que cada caso é um caso e vai da nossa sensibilidade e profissionalismo saber identificar a melhor forma de os abordar...

    grande abraço e parabéns pelo post!

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  3. bom post. gostei da história que se passou no seu serviço, mas poderia se passar em qualquer urgencia do País.
    Muitas vezes a dificuldade não está em compreender o suicidio mas o que está para traz da tentativa, isso sim! Mas para isso é necessário "saber ser e estar" e por vezes não é um diploma que dá essas virtudes.

    luispgod

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  4. Li o texto com toda a atenção, e realmente este um de muitos casos que surgem nos nossos serviços hospitalares! Alguns safam-se sem sequelas de maior, outros com sequelas fisicas impressionantes!
    Tenho plena consciência da crueza das minhas palavras mas, muitas vezes, apetece-me fazer algo semelhante ao que o Dr I fez, explicar ao suicida a forma mais eficaz de concretizar os seus intentos! (Nunca o fiz e não o farei - note-se!)
    Desde quando é que a vida tem que ser um valor absoluto para todos?!
    Se as pessoas manifestam, e de forma inequivoca, a intenção de terminarem com a sua própria vida - e em elguns casos, a demonstração é repetida - porque não permitir-lhes que tal aconteça!?
    Poupávamos muito sofrimento ao paciente, á familia e a todos quantos o rodeiam...
    Sim, ensinaram-me na faculdade as condicionantes psicológicas e psiquiátricas individuais e sociais das tentativas de suicidio e mesmo das situações de suicidio consumado!
    Sim, falaram-me da tolerância, da compreensão, dos valores e dos principios éticos a que a profissão obriga, mas... para estes casos, o dia a dia vai-me ensinando, outras coisas, também!
    Descansem os mais zelosos: não tenho ideias suicidas ( e, não teria coragem para me suicidar) quero morrer de velhice, quero experimentar o mundo... :)

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  5. Guilherme
    Um post mt interessante, sem dúvida...
    Quanto ao Sr Dr, apenas digo que é Dr mas não é humano.
    Um recado que lhe deixo a esse Dr I,é que espero que o Sr nunca tenha a infelicidade de ter um caso de suicídio na família...é duro para os familiares, amigos... porque a dor da perda é mt grande, mas tb por não percebe o que fez cometer tal acto.
    O PORQUÊ parai sempre...ainda hoje parai mesmo depois de tanto tempo...
    Um dia numa aula a minha professora colocou uma questão:
    O suicídio é um acto de coragem ou de cobardia??
    Eis a questão...

    Abraços

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  6. Não me admira tudo isti, pois cerca de uma ano recorri ás urgências com minha filha na altura com 12 meses, havia tido febre de 39,5º sem qualquer razão, administrei benu-ron e ao fim de 4 horas a febre voltou aos 39,5º de imediato administrei novamente benu-ron e recorri ao sap, mas pelo caminho ela estava quase com inconsciência( apresentava sono e fadiga) fiz o que pude para arrefecer o carro decidi ir de imediato ás urgências, logo que cheguei fui chamada á triagem e ... Expliquei udo á senhora enfermeira da triagem que após vêr a febre da menina 38,9º disse -me " já está a baixar" deu -me fita verde e mandou para a sala de espera!!! Reclamei e ela ainda me disse " vós não sabeis ser mêas por tudo e por nada vêm para cá...
    E depois??? Depois mudou de enfermeira na triagem e tudo que vinha tinha fita amarela, fui atendida ao fim de quase 2 horas...
    As lágrimas corriam -me o rosto e os braços já me doíam de ter ao colo mas não permiti que meu marido lhe pegasse , porque vos digo que se ela fizesse alguma convulsão não sei o que faria..Dor de mãe é dor de mãe...

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  7. Cara Paula,
    Compreendo a sua "dor". Porém há um engano no que diz. Uma criança com 38,9 na triagem, leva uma pulseira laranja (muito urgente) e não verde. É impossivel a enfermeira ter escrito 38.9... o sistema não deixava passar. Se ela escreveu uma temperatura inferior para passar para verde, agiu mal, mas não acredito que isso tivesse acontecido.

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  8. Guilherme, situações semelhantes a essa já eu assisti demasiadas vezes!! Mas anormais há, infelizmente em todo lado...
    Abraço.

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  9. Srº Guilherme o que ela escreveu não vi, mas vi o que registava no termómetro e era 38.9! Sei que o que diz é verdade mas aquela senora errou pois eu a minha filha mais velha já lá entrou com 38,4 e foi de imediato para a sala de obs para baixar a febre( não me lembro a fita, creio que nem a tive porque o enf levou -me logo á sala obs.
    Mas daqui a uns tempos irei contactá -lo(agradeço que me diga como poderei fazê -lo), porque recentemente houve uma outra situação( num piso) que ainda causou mais dor e sofrimento pela frigidez de um enfermeiro... Mas esta não passará em branco...

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  10. Se assim aconteceu então tem toda a razão. Normalmente nós, os enfermeiros, na triagem de Manchester, procuramos ser o máximo exatos e precisos, porque uma cor mal atribuida poderá trazer implicações graves. Normalmente em caso de duvida ate damos uma cor com mais prioridade do que aquela que eventualmente deveria ser. Tem todo o direito e ate dever de reclamar, desde que seja justa.
    Pode sempre falar comigo desta forma, ou então pode comunicar por email para guilhermedecarmo@iol.pt

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